“Vivemos num mundo onde não fazemos o que queremos fazer, mas sim o que a convenção humana convencionou. Somos obrigados a fazer o que o Estado manda. Vivemos num mundo onde, se não temos nada somos marginalizados, somos olhados com olhares desprezantes, somos olhados de soslaio. Vivemos num mundo que, se temos algo, sobretudo monetário, somos babados, bajulados, estereotipados e, mormente, idolatrados” ANDERSON COSTA

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Exórdio

Exórdio do meu futuro segundo livro de Sonetos.


No impulso de viver mais um dia de trivialidade, mais um momentinho sequer, levanto-me da cama a qual dormir toda a noite e, automaticamente, sento-me a mim e ao meu ser por sobre uma velha cadeira, já torta e um pouco à toa devido às sucessivas horas em que nela permaneci. Quase todas as manhãs é esse o meu ofício. Por sobre a mesa um pouco empoeirada derramo todas as minhas tripas, até o intestino delgado das acepções, todas as minhas artificiais convicções. Não me debruço sobre Dante, Rimbaud, Balzac ou Baudelaire, mas tão-somente sobre as poesias do Nauro Machado, sobre suas moelas viscerais, sobre o vazio da existência, não o schopenhaueriano, mas o meu próprio. Quando não, busco alguma energia que me galvanize, mesmo sendo-me uma autoflagelação, a andar rente a estátuas, a ouvir-lhes os cânticos sem aquele quê de melodia. Às vezes até canso desta existência e às vezes não, pois teoricamente o viver é só um. Às vezes também canso das horas ociosas que o alheismo venera, do vazio comunicativo que enche a vizinhança de merdas, das vermes que açoitam todas as entrelinhas, moldando todos à superficialidade.

Todavia, ainda há em mim um quê de esperança. Talvez ainda exista um restinho de sensibilidade entre as pessoas, neste convívio social que se diz contemporâneo devido à convenção numérica das vinte e quatro horas. Por que estou a dizer isso? Porque o que apenas vejo ao meu redor são paredes, algo rústico, idolatrias exasperantes e uma tosquiação dos que se elevam, uma cusparada feita ofício. E o que é o viver? É integrar-se a um partido político ou a uma religião e diariamente discutir com veemência a ambos, ou será apenas dizer que se é crédulo? Se isso é o viver, por favor, ponham-me vivo em qualquer mausoléu ou me joguem no poético além-mar, longe, bem longe das doutrinas que escarram na cabeça de todos, sem exceções, longe dos postiços sorrisos, dos que se prendem à frente dos anticoncepcionais tão vendidos na novela das oito. Por favor! Todos os dias assim se vão, às daninhas, entupindo-me as artérias, mijando sobre mim os seres-empáfia daqui e de acolá.

Assim também se vão minhas divagações, desnorteadamente sobre minha cabeça, algo assemelhado a uma auréola subtendida. Por isso levanto os braços e agradeço todos os dias a Deus: “que bom que as estórias não se repetem e que em algum lugar permanecem enquanto minha matéria fica retida num espaldar futurístico que não há, numa incertidão descompassada”. E enquanto não chega as propícias aniquilações subalternas, reflito tudo o que longe permanece, algo que morreu nas carnes de Foucault, de Nietzsche ou de Kierkegaard, algo individualista e que se esqueceu da plenitude desejada. Embora assim finja-me te digerindo, ó senhoras conveniências, a amarelidão das sequazes hepatites, hei de convir com o provérbio que diz ser a vida excelentíssima quando destituída de sabedoria.

Até ao anoitecer, qualquer manifestação de chulice é intrínseca à minha forma de organização artística. Sempre serei chulo, pois os meus chefes do dia-a-dia, todos os detentores da sabedoria e dos bons modos sempre me olharão de soslaio, continuarão a passar sem qualquer bom-dia me dizerem, todos nas suas vestes egocêntricas. Não que os bons-dias signifiquem algo para mim. O que significa tão-somente é a hierarquia dos circundantes. Encontro-me mesmo é num necrotério de friorentos corpos já sisudos de tantas convicções, de tantas razões verdadeiras, de tantas verdades absolutas.

Enfim, o tempo sempre permanecerá em chamas, totalmente consumido pelo tedioso ornamento da onomatopeia: tique-taque, evaporando-se nas putrefatas matérias de milhares de cadáveres clandestinos, por aí à deriva de toda a substância, de todas as responsabilidades do desespero-fraqueza kierkegaardiano. Ainda há quem não veja o retumbar insolente de tudo que já foi ensinado, da ciência que se fez edificada. 


Mesmo quando não me convém, irei elucidar o que se deixa elucidar-se, irei chorar no meu próprio funeral, irei cuspir onde os olhos não alcançam, irei amarrar os ossos à fome mundial. Irei fazer tudo isso sem me ater a escapulários, a rosários, a procissões, a promessas. Se for pra cair, quedar-me-ei nas cinzas das minhas borradas pinturas, sem o belo arco-íris das demais vidas, sem a conta bancária que enseja as máscaras risonhas. Para alguns resta somente a reza, para outros a oração. Para mim resta a consolação de saber que há algo após meu findar, algo melhor que tudo isso, algo que não se move no respaldo estereótipo, algo que não chora por não ter que sorrir.
                                                                                                                   Anderson Costa

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